domingo, 9 de novembro de 2008

Fotojornalismo. Oportunismo, um mau necessário ou a história sem letras?

Sou um entusiasta do fotojornalismo. A missão de transmitir em um único fotograma a melhor compreensão possível de um fato me fascina. Embora fotógrafo, não estou nesta atividade por questões diversas, alheias a minha vontade e que não vêm ao caso. Tão pouco sou jornalista ou tenha conhecimento da profissão, possuo nenhuma formação acadêmica na área para ter acesso aos códigos de ética e posturas de quem tem que entrar na vida das pessoas para documentar e informar. Mas se pudesse hoje escolher, provavelmente direcionaria minha carreira para tal. Sempre que possível, busco em meu trabalho autoral este viés, contar histórias com imagens, dinamizar o estático registro.
Por esse motivo, me causa indignação quando vejo a atividade atirada à vala comum do oportunismo e à crítica generalizada e estereotipada quando esta envolve a exposição das pessoas. Aquela crítica que considera o fotógrafo que vai aos fatos, insensível, antiético e oportunista. Um abutre da desgraça alheia que não respeita dor, sofrimento, privacidade e arranca das pessoas em momentos ou realidade difícil sua imagem na busca de reconhecimento profissional.
Não é possível fazer uma análise razoável sem estar de comum acordo de que sensacionalismo não é jornalismo. Não sério. E de que em todos os segmentos existem bons e maus profissionais.
Em primeiro lugar é necessário ter clara a necessidade da informação, sem a qual jamais teremos a iniciativa de quem quer que seja de começar, tentar ou participar das soluções dos problemas. Independentemente de imagens ou laudas de texto, é preciso que cheguem até nós todas as realidades, e que isso é fundamental para que a conscientização, embora inadequadamente lenta e de eficácia muito aquém da necessária, exista. Acho que isso é um ponto de senso comum e inquestionável, ou não?
Sendo assim, qual a diferença entre uma matéria bem escrita, com dados coletados de fontes seguras, depoimentos significativos, uma pesquisa feita com cuidado e a mão de um bom jornalista que vai organizar e dar o tom destas informações de modo a informar e criar o interesse e uma fotografia que represente tudo isso? Ambos geralmente se complementam na reportagem, mas por que pode-se “apropriar-se” de uma história, mas não da imagem dela? Porque podemos publicar o relato de alguém, por mais cruel e dramático que este seja, com nome, profissão e idade, mas não podemos mostrar a imagem dela neste contexto? O que é mais propriedade? Nossa história ou nossa imagem? Nossa vivência ou nossa estampa mortal? Do que o fotojornalista se apropria indevidamente, afinal, quando registra uma pessoa inserida no contexto jornalístico? O que ele está ali roubando?
Mas as farpas contundentes geralmente estão direcionadas às situações em que as pessoas são registradas em momentos ou situações dramáticas. Seja por um acontecimento ou por uma situação extrema em que se encontram. Seja o simples registro oua Ca ptura elaborada, autoral. Então separamos a foto jornalística em dois segmentos distintos: O flagrante e o documento.

O flagrante, na minha opinião, seria mais suscetível a abusos por parte do fotógrafo (ou do editor que publica). Não se combina com as pessoas o flagrante, não se obtém seu consentimento prévio, estão muitas vezes em situação de desespero e na maioria delas realmente não gostariam de estar aparecendo naquele momento. Então, nesse momento se separa o bom jornalismo do mau jornalismo. Quando se decide se a importância de publicar determinada imagem, para o bem da informação, vale a exposição daquelas pessoas. Um flagrante de violência policial precisa ser mostrado, e é preciso ter em mente que para evitar que ela se repita a exposição de uma vítima num momento flagrante é importante. Mas a imagem de violência numa briga entre vizinhos nada acrescenta, nada representa. Então é necessário de fato o melhor julgamento para decidir o que publicar e o que nada acrescenta. Não é fácil.
Mas o que pretendo defender, de verdade, é o trabalho documental, autoral. Profissionais que submergem aos bolsões de miséria, ou em áreas de conflito, vivenciam aquela realidade, se misturam às pessoas, ouvem suas histórias e abrem uma janela ao mundo para sua tragédia. Quase sempre, nestes casos, essas pessoas querem ser mostradas, se sentem esquecidas, ignoradas, não estão nem um pouco preocupadas com sua privacidade, querem que as pessoas saibam o que acontece com elas, de bom ou de ruim. Nas pequenas incursões que fiz em lugares onde havia algum tipo de carência a receptividade à câmera fotográfica era fantástica. Não acreditavam que eu fosse resolver alguma coisa publicando sua imagem em algum lugar, mas queriam que eu as visse, que as mostrasse, que tivessem atenção. E conversavam, contavam suas histórias, abriam seu mundo. Há uma troca. Ter atenção, para estas pessoas, era um acontecimento gratificante numa rotina de esquecimento e abandono. Neste tipo de trabalho, não há o que fotografar sem consentimento. Não há bom trabalho se não existir interatividade. Uma fotografia autoral não é roubada. Uma expressão autêntica não é usurpada. Retratar contra a vontade do retratado é o melhor caminho para um trabalho ruim.
Mas, sendo um bom ou um mal trabalho, de que ele serve a essas vítimas sociais? No que ele realmente ajuda? Qual o resultado prático disto? Provoca a indignação, compaixão e efêmera consternação nas pessoas em suas casas confortáveis e em sua vida segura? Sim, na maioria das vezes é apenas isso o que acontece. Mas é um trabalho de formiga, pois em algum momento, em algum lugar uma imagem destas toca alguém que realmente terá uma iniciativa, mínima que seja. O coro de janelas abertas para o mundo vai criar uma mísera chance dessas pessoas, ou de seus descendentes, vislumbrar um futuro melhor ou receber uma mísera ajuda, que seja. E então, todas aquelas imagens roubadas terá valido a pena. O que jamais ocorreria se apenas pudéssemos mostrar aos nossos filhos imagens de um mundo disneylândico, moldado à nossa irrealidade. Mostremos o cachorrinho dos Obama, milhonários perdendo fortunas no cassino de Wall Street, a cerimônia de abertura dos jogos olímpicos na China, e o mundo continuará tranquilamente lindo, pronto para ser fotografado! O Iraque desapareceu, onde fica mesmo? O conflito nos territórios palestinos (ah, aquele povo nunca se entende mesmo)? E porque mesmo precisamos pedir certificado de origem ao comprar um diamante? Então, quem vai nos alertar para o fato de que as coisas estão erradas? Aquelas imagens desses fotógrafos abutres só servem para satisfazer sua vaidade pessoal?
Na década de oitenta os conflitos na então Etiópia, hoje República do Congo e por vários pontos do continente africano, chocaram o mundo por suas conseqüências. As campanhas para arrecadar alimentos e medicamentos para o povo nômade que morria pela fome e violência se multiplicaram pelo ocidente. Campanhas muitas oportunistas para promover artistas, outras nem tanto proliferaram. Algo foi feito. Contribuições, donativos, voluntários... Resolver definitivamente, não resolveu, mas amenizou para alguns. Mobilização houve. Adequada ou não... não sei responder. Mas qual seria essa mobilização se muitas destas vítimas não tivessem emprestado sua imagem esquálida e esquelética, inclusive de suas crianças em falência nutricional para chocar o mundo? Chocaram-se milhões! Alguns milhares se mobilizaram. Algumas centenas de fato ajudaram. Na minha opinião, isso vale mais do que a preservação de qualquer direito a propriedade da imagem. Estou certo que muitas destas pessoas sofridas no nosso planeta têm muito a agradecer porque alguém deixou sua família num lugar distante, viajou para um lugar inóspito, inseguro, e registrou seu sofrimento em troca de US$ 100,00 a foto publicada.
Mas um círculo pequeno de interessados no assunto, amantes da atividade, ou profissionais da mesma, vai dar mais importância a qualidade técnica do trabalho do que a realidade ali exposta, que já se tornou até banal. Sim, é verdade! Dentro de um círculo pequeno. Mas a fotografia é uma profissão, há de ter sua excelência para se fazer um bom trabalho. O que significa a técnica para a “boa intenção” do profissional? Significa que ele soube usar uma linguagem adequada para transmitir a dramaticidade da situação, que ele soube expor o que sentiu diante de um infortúnio através do congelamento de uma fração de segundo dentro de um pequeno retângulo (isto é assunto para um outro artigo). O que quero dizer é que para comunicar o que sente num determinado momento, o fotógrafo precisa usar de recursos que façam o simples registro se transformar num verdadeiro veículo de sensações. É dramática uma situação ao vivo, mas há que se transportar essa dramaticidade ao público dentro de um fotograma! Então, o que é o bom fotojornalismo autoral? A imagem crua de uma menina-moça, sangrando entre as pernas amarradas por ter seu clitóris mutilado a cores, no modo automático da câmera, em 35mm? Ou seu olhar de futuro condenado e desesperança em 256 tons de cinza? O que é mais real ou verdadeiro? O que transmite de fato o significado desta aberração? O que nos toca mais?
E o que há de errado em ser pago por isto? Em ser premiado por isto (prêmio é remuneração, é reconhecimento)? É um trabalho como outro qualquer! Um trabalho necessário, útil! E eles gostam do que fazem, que mau há nisso? E são mal pagos. Muitos são freelancers! Premiados são aqueles que fazem seu trabalho bem feito. Notem que o Pulitzer não premia fotografias por sua qualidade técnica, mas por sua importância jornalística. E é o maior reconhecimento de referência.
Acho que antes de mais nada, devemos perguntar aos interessados. Antes de achar que estamos defendendo o interesse deles: Quem lhes é mais útil, os que viajam milhares de quilômetros para lhes registrar as mazelas e realidades, levá-las para o resto do mundo ou aqueles que ficam julgando este trabalho no conforto de seus lares e apenas achando-o oportunista?

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